terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Salvador

 SALVADOR

Mais um dia. Sinto o estômago quase colado às costas. Salvador é o meu nome. Que ironia! Salvador? Eu que quero ser salvo desta miséria onde chafurdo todos os dias. Há dois dias que só como uns restos de pão duro. E este frio? Morro congelado! Se ao menos alguma alma caridosa, desses voluntários que andam por aí, me trouxessem uma manta. Mas nem enxergam a minha presença. Chego-me ao Coxo, dorme a meu lado, roncando, indiferente a tudo. O ar é nauseabundo. Tapo-me com um cartão que encontrei na rua, perto dum armazém velho. 

Salvador - Ironia dos meus pais! Abandonaram- me em pequeno, quando viram que não me conseguiam sustentar. Menos uma boca... Sim, salvei-os do sustento de mais uma boca! Vagueei pelas ruas, perdido, e ia enganando a fome com aquilo que ia conseguindo roubar das mercearias ou encontrar por aí. Cheguei a vasculhar os contentores do lixo e às vezes lá encontrava uns restos de massa, arroz ou carne putrefacta. 

Salvador, eu? Quem me salva deste frio que me congela o corpo e desta fome que me engole as entranhas? 

A minha casa é uma cave submersa duma ponte desta cidade. Moro com o Coxo, o Zarolho e o Drogado. Boa gente. Gente a ser salva. Mas eu não faço jus ao meu nome. Nem nenhum deles, nesta vida.

Está tanto frio! O meu cérebro está a congelar, já nem sinto as mãos, e os meus pés são como pedras de gelo que não consigo mexer. O cheiro à minha volta é um misto de odores a gasóleo, fumo, suor e dejetos podres. Acabo por adormecer, nauseado. Sinto-me muito fraco, anestesiado pelo frio, a fome, os cheiros. Quero morrer!

 - Salvador, acorda! Está na hora de ires para o trabalho. - Estranho esta voz feminina tão familiar. Soa como música para os meus ouvidos. Desperto. Foi só um pesadelo!

 Cheira a pão torrado, a café acabado de fazer, ouço o crepitar da lenha na lareira na sala. Aninho-me neste conforto. Preciso sentir que é mesmo real esta cama quente onde estou deitado. Sinto a alma mais reconfortada, agora. Suspiro de alívio. Estou vivo e escapei de um pesadelo! Vislumbro o sorriso mais amoroso, os olhos mais ternos, do mundo, a minha salvadora: 

 ─ Bom dia, paizinho! ─  Dá-me um beijinho no rosto. Sabe-me a doces de Natal, daqueles feitos com amor no fogão quente da nossa mãe. Suspiro. Afinal ainda terei oportunidade de salvar alguém, nem que seja


do frio da noite negra. Nunca se sabe se o céu nos poderá cair em cima. A qualquer um de nós. De um momento para o outro.








terça-feira, 15 de junho de 2021

Pai-menino

 

Aonde está a tua sombra?
Agora procuras o chão que não pisaste, a criança que nunca foste
Perdido, segues passos que desconheces
E sentas-te ao meu colo
Outrora foi meu o teu colo
Arrastas pesadamente as tuas raízes em busca da tua casa
Teus pais, além, sorriem e esperam-te para te acolherem, como nunca puderam fazer
Sou impotente perante a tua dimensão de menino num corpo que não segue os passos da tua infância perdida
Meu pai, meu anjo protector que agora, sem saberes, me abandona no desespero de não te conseguir alcançar 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

As minhas cortinas

 

As minhas cortinas são o mar. Através do azul que me entra pela janela, vejo os pássaros que passam velozes em debandada e transporto-me em viagens para sítios desconhecidos e voo, voo sempre. 
Vejo o sol que me diz bom dia e me acaricia o corpo.
Vejo as ondas que me (en)cantam, quais sereias que despertam ao acordar da maresia.
Sou livre, sou pássaro, sou onda, sou raio de sol embalado ao sabor das marés dos dias. 

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Resta a poesia


 Há pedaços de amor espalhados pelo chão da sala.

 Lá fora, na rua, a alegria foi atropelada por um camião de cinzas.

Os risos foram abafados por pedaços dos fatos dos fantasmas que se soltaram das prisões onde moravam.

Outrora, eram as brincadeiras das crianças que me despertavam na madrugada esquecida. 

Os pássaros, em debandada, fugiram para longe.

Resta-me a poesia em farrapos, as notas soltas de um piano, o despertar  de um novo dia banhado por rios de esperança.

Há pedaços de amor espalhados pelo chão da sala.
Lá fora, na rua, a alegria foi atropelada por um camião de cinzas.
Os risos foram abafados por pedaços dos fatos dos fantasmas que se soltaram das prisões onde moravam.
Outrora, eram as brincadeiras das crianças que me despertavam na madrugada esquecida. 
Os pássaros, em debandada, fugiram para longe.
Resta-me a poesia em farrapos, as notas soltas de um piano, o despertar  de um novo dia banhado por rios de esperança.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

Nos olhos do faroleiro


 Entrei nos olhos do faroleiro

Meus olhos tornaram-se duas luzes

Tateiam agora o espaço sideral

Buscam as estrelas que se afastam velozes

Lá longe um navio acena, projecta sonhos de uma terra longínqua

O faroleiro traz os olhos cheios de horizontes, mundos por descobrir

Eu entrei neles, espalhei-me no azul e desvendei os segredos do mar

Sou apenas uma luz perdida no Oceano


segunda-feira, 26 de abril de 2021

A mulher sentada à janela


 Está a morrer a mulher sentada na janela da vida.

Ninguém a vê.

Dizem que o mundo que olha pela janela é o seu. 

Não o reconhece.

Está a morrer a mulher sentada na janela da vida. 

Está só. 

Morre nessa solidão com as marcas na pele dos caminhos secretos. 

Doiem essas marcas... São feridas que fizeram casa dentro de si. 

E a mulher sentada, só, ferida, morre, lentamente, sem que ninguém a veja, ninguém a sinta. 

Nesse mundo que dizem ser seu, passam, indiferentes, os transeuntes da vida, mascarados daquilo que nunca foram. 

Morre lentamente sem que a saibam, sem ser gente.

 Só, ferida, com a máscara da vida. 



domingo, 25 de abril de 2021

VERTIGEM


 2050

Leon acorda. Onde está?

Sente os membros entorpecidos, o cérebro congelado. Toca, a medo, na cabeça. Onde estão os seus cabelos?É apenas um ser em estado vegetativo, abandonado numa cave escura, numa cama bafienta.

Quem é, de onde vem, como foi ali parar? São as únicas perguntas que lhe assolam o cérebro ainda confuso.

Olha à volta. Não vê ninguém. 

2027, 

Um ano terrifico para a humanidade. Uma peste, sem causas definidas, devastara  um terço da população da face da Terra.  Entretanto, seres de outros planetas tinham-no invadido. Aproveitando-se duma humanidade enfraquecida, muitos deles intentaram os seus planos maléficos. 

Leon era um homem de meia idade, bem constituído, vibrante de vida. 

Trabalhava para uma causa que considerava maior: um projeto ecológico a nível mundial. A preservação da Natureza era tudo o que o movia. 

E sentia-se plenamente realizado  neste propósito de vida. 

Dana, a sua namorada, uma bela mulher de cabelos louros e  curvas  atraentes, acompanhava-o em todas as expedições pelo mundo no cumprimento desta missão. 

Neste ano de 2027, a humanidade acordou duma catástrofe. Apenas alguns sobreviveram. 

Aliens,  vindos de diversas partes do Universo, tinham invadido a Terra. Alguns tentavam destruir o pouco que dela existia,  e  lutavam com as forças a que Leon e Dana pertenciam, que procuravam preservar  a Natureza subjacente. 

No meio desta luta inglória,  apareceu uma espécie, diferente de todas as outras, oriunda do planeta Etheria. 

Michael era o comandante da nave e estabeleceu contacto com Leon. 

- Estamos aqui para vos ajudar! - disse, telepaticamente, Michael, cuja voz chegou de imediato ao coração de Leon. 

Este acolheu-o, abrindo o coração como se de um abraço, selado há séculos, se tratasse. Um Amor Maior, inexplicável, unia-os. 

- Sim, meu querido Michael. Urge salvar o planeta e a restante humanidade restante que sobreviveu a estes tempos difíceis. 

- Para isso, terás que conhecer o meu Planeta Etheria. Convido-vos, a ti e a Dana, a visitá-lo para aprenderes como vivemos e como somos felizes. Serviremos como modelo para criarem uma Nova Terra. 

Sem hesitar, Leon e Dana embarcaram na nave, receosos, mas ao mesmo tempo ansiosos. 

 Respirava-se e sentia-se junto destes seres doces e amigáveis uma energia de Amor, calma e etérea, como seria, de certeza, esse planeta.

A nave partiu com Leon e Dana. Ainda conseguiram vislumbrar as cinzas e despojos do seu planeta, tão maltratado, que ficava para trás. As lágrimas caiam-lhes pelo rosto. Sentiam-se impotentes. 

Agora observavam a beleza do Universo, com as suas galáxias, estrelas, planetas e sentiam-se cada vez mais pequenos. 

Perigo repentino. Um meteoro gigante aproximava-se a toda a velocidade da nave. 

Dana agarrou-se a Leon, tremendo de medo. Felizmente, passou ao lado. Estavam salvos. 

Finalmente, chegaram a Etheria. A atmosfera era leve, branca, rosa, dourada. Os habitantes vieram dar as boas vindas. Não pronunciavam palavras, mas as suas vozes eram compostas de música e poesia numa linguagem de amor que se sentia no coração. Eram aqueles que, na Terra, apelidavam de Anjos, deslocando-se com as suas asas níveas, subtilmente, conforme a gravidade do ar. 

Viviam dançando ao sabor de música celestial e nada precisavam para serem felizes. 

A Natureza retribuía esse amor, criando naturalmente o alimento de que necessitavam. 

Todos faziam parte de uma grande família de Amor que zelava, à distância, por outros planetas necessitados, através de ondas telepáticas. 

Leon e Dana não queriam acreditar no que viam. Era um sonho. O sonho que sempre tinham desejado para o planeta Terra. 

Adormeceram nessa noite embalados pela música de Etheria. 

Subitamente, foram brutalmente acordados por umas criaturas monstruosas, verdes, viscosas e repugnantes. Os Aliens do planeta Zombie tinham invadido Etheria. 

Agarraram Dana e, entre os seus braços de polvo, levaram-na para longe de Leon, que se debatia numa luta desigual para a proteger. Em vão. 

Os gritos de Dana, à medida que desaparecia nos braços do maldito ser, eram farpas que entravam nos seus ouvidos e se cravavam no coração. 

-Danaaaaaa! - gritava Leon, perante os atónitos Anjos de Etheria, agora acorrentados e impotentes perante tanta maldade. 

De repente, sente um braço verde e viscoso, agarrando-o pelo pescoço. Estava agora numa arca congeladora e começava a deixar de sentir o corpo, o cérebro fugia-lhe para longe, as mãos e os pés deixaram de se mover. Só o coração ainda batia. 

Não sabemos quanto tempo Leon esteve ali, era um coração palpitante dentro de um bloco congelado mas a viagem que fez, foi alucinante e ao mesmo tempo mágica. 

O coração de Leon não parava de bater e agora não tinha barreiras nem fronteiras. Viajava por todas as galáxias existentes no Universo. Conheceu-se noutros corpos, noutros mundos, noutras vidas. Sentiu que era um Ser fantástico e poderoso. Como comandante, apenas o coração o guiava nesta viagem. 

Viu-se e reconheceu-se numa estrela, numa flor, numa criança, no mar infinito, numa árvore, num pássaro. 

Ele era tudo. Será que afinal Deus se tinha personificado em si mesmo? Ou será que tudo o que sentia era a essência divina na sua totalidade? 

Uma Paz infinita apoderou-se do seu ser e o calor dessa Paz e desse Amor quebrou-lhe o gelo que o embalsamava.

2050

Acordo.

Não sinto o corpo. É algo exterior a mim. Não conheço este invólucro onde estou afundado. 

Quem sou? O que estou aqui a fazer? 

Abro os olhos ainda  obscurecidos e observo à volta. 

Não vejo nenhum ser. 

Tento mexer uma perna. O degelo deste invólucro que não conheço inicia-se.

Toco com os dedos na parede do buraco onde estou. Consigo, aos poucos, sentir um cheiro nauseabundo à minha volta. Uma mistura de mofo e dejectos inunda a zona circundante. 

Salto deste abismo. Bamboleante, oscilante e a medo, saio. Encontro uma cidade. Ah! Recordo-me agora. Este é o meu planeta! 

Mas não há ninguém. Vagueio, perdido, pelas ruas e não vejo nem uma pessoa. Onde estão todos? 

Que aconteceu?

Entro num supermercado. A porta estava aberta. 

Para minha surpresa, as prateleiras estão cheias. 

De repente, penso:

-Onde está o meu amor, a minha Dana? 

 Agora lembrei-me da maneira atroz como me foi tirada por aquele ser horrível. 

Continuo a percorrer as ruas desertas. Sou o único ser vivo ao cimo da Terra. 

Nem um animal para me fazer companhia. 

Confundo a ilusão com a realidade. 

Será que foi tudo um sonho? Ou fruto da minha imaginação? 

Será que tudo é um SONHO, o local onde vivi sempre? 

Se o sonho é criado por mim... 

De repente, acordo e vejo na minha frente a figura mais bela e amorosa que alguma vez vi. 

- Dana, és tu? 

E, no meio de um abraço e de um beijo ardente, fundimo-nos num só corpo que se esfuma no espaço e se perde no ar até ao infinito. 

Agora somos só nós na nossa Casa de Amor.


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Sim


 

Sim

Espero ansiosamente esta palavra. há anos . alargo o passo, mas não consigo acompanhar a minha vontade.

o anel de ouro e diamantes  cintila no bolso do casaco, escolhido para adornar o dedo da minha princesa.

há dois anos que não a vejo! dois anos que parecem duas eternidades!

recordo, como se fosse hoje, da primeira vez que a vi, sentada naquele banco do jardim. pensei que estava a ter uma visão. uma flor, no meio das flores.

Olhámo-nos e reconhecemo-nos logo.  saudades de algo distante e misterioso.

(há quanto tempo não te via! as nossas almas entrelaçaram-se naquele momento.)

ambos fulminados pelos raios ardentes duma paixão inexplicável!

naquele mesmo banco, jurámos amor eterno.

seguiram-se dias e noites de paixão interminável. o sonho realizado. esquecemos que existia tempo, alheados deste mundo.

passaram dois anos. sonhei com ela todas as noites.

a vida obrigara-me à ausência.

mensagens apaixonadas, telefonemas sucessivos para acalentar a dor. a voz dela um poema para os meus ouvidos.

sinto ainda os  lábios carnudos nos meus, os beijos quentes escaldantes, o cheiro a perfume, misto de doce e floral, a sua pele de veludo, as suas mãos macias, o calor do seu corpo escultural diluindo-se no meu.  o coração dispara.

tremo de ansiedade enquanto me aproximo do nosso, (só nosso) banco de jardim. o coração quase me salta do peito.

no meio das flores, naquele mesmo banco onde nos encontrámos e depois nos despedimos, salta-me à vista um vestido vermelho, um decote sexy, adivinhando o seu peito voluptuoso. Um rosto, de sorriso único e deslumbrante, rodeado por um cabelo da cor do sol. uma visão! é ela em carne e osso, o ser mais belo do mundo!

sem fôlego, aproximo-me do seu ouvido:

- Marta, ainda queres casar comigo?

a resposta, o êxtase:

- Sim!






domingo, 18 de abril de 2021

Perdida na Combustão




Naquele dia, procurou o carro no parque de estacionamento, acometida por uma habitual e estranha amnésia .

No meio daquelas viaturas, de todas as marcas, onde teria estacionado a sua?

A cabeça voava para longe – outros mundos por descobrir. O veículo que a conduziria não seria sólido, ultrapassaria as leis da física, qual teletransporte sem fronteiras.

Dominada por estes devaneios, observava as viaturas, alinhadas lado a lado, nos contornos desenhados no chão.

Cada uma transportava uma história, segredos por desvendar. Quiçá, pudessem contá-las, qual Kitt, carro falante. Sorria. Imaginava algumas histórias. Amores ilícitos nos estofos.

A sua história era única.

Procurava. Onde teria deixado o seu?

Imaginava-se agora numa “pão de forma” dos anos 70 – só Peace and Love.

Que monte de latas frágeis, efémeras, metáforas de vida!

Passou. Não o viu. Prosseguiu.

Parou.

Um vulto, vestido de óleo, cheiro a gasolina, voz rouca do cigarro quase engolido, aproximou-se. Tocou-lhe no ombro:

- Menina, onde estacionou o seu carro dos sonhos? Quer levar-me? Estou farto desta prisão tóxica, em troca de uns míseros trocos!

Agarrou-lhe a mão, sem medo e foram procurá-lo.

Entretanto a noite caíra, todos os carros se confundiam. Só um rasgo da luz da lua permitia vislumbrar os que ainda persistiam em pernoitar por ali.

Esquecera-se até da cor do seu.

Saberia o arrumador onde encontrar o carro dos sonhos?

Subitamente, este ser enigmático entrou numa espécie de combustão. Todo ele era labaredas de fogo e luz. Dos seus braços saíram umas asas. Seria um anjo?

Os olhos eram como estrelas fulminantes, o cheiro que exalava já não era de gasolina, mas de um perfume inigualável.

Agarrou-a pela cintura, elevando-a. Pairaram sobre o parque onde o amontoado de latas esperava que alguém as resgatasse daquela imobilidade.

A sua, algures, esquecida.

No meio das outras.

Naquele planeta estranho.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

D. Xica e Malacueco


 




Tinha ido visitar a lua.

Dª Xica que tinha fama de feiticeira na aldeia.

Vivia sozinha num casarão enorme e velho, grande demais para albergar aquele corpo tão enfezado.

Raramente alguém a via.

Vestida sempre de negro, um pequeno carrapito no alto da cabeça, sapatos rotos de velhos sempre a chinelar sobre uns pés magros de unhas enormes e sujas, um rosto carrancudo, olhos misteriosos, nariz adunco.

Ninguém tinha a coragem de se aproximar. Sabe-se lá porquê!

Adivinhava-se o cheiro a mofo e bolorento dentro de casa, as teias de aranha, o fumo constante da lareira. Uma imensa e negra floresta estendia-se ao redor.

O medo instigava à solidão desta enigmática personagem.

Em noites de lua cheia, sabia-se (sabe-se lá como) que saía à rua – dizia-se- saía, chinelando, pé ante pé.

Nessa noite, Dª Xica teve um arrepio de medo. Que monstro era aquele, magro, enorme, que se aproximava?

“De noite todos os gatos são pardos” – balbuciou, tremendo.

Reparou, num relance, que o pressuposto monstro nada mais era que um gato enorme, preto, que, sem medo, se aproximava. Miava, dando-lhe “marradinhas” com a sua cabeça peluda, grandes olhos verdes. Nunca nenhum ser vivo se tinha aproximado dela assim.

A paixão foi tal que o levou para casa. Malacueco ficou o seu nome.

Anos e anos de amor entre ambos se seguiram.

O gato negro seria objeto dos seus feitiços? – perguntavam-se os aldeões.

Num dia, muito negro e chuvoso, Malacueco surgiu no largo da igreja, miando aflitivamente. Ninguém sabia o motivo desse pranto gatil.

Alguém, mais afoito, resolveu ir à casa da dita feiticeira.

Numa cama de rosas, rodeada de velas, odores paradisíacos, estava uma dama, linda de morrer. Dª Xica tinha morrido. Era bela a imagem que os curiosos observavam!

O encanto desfizera-se! Malacueco não parava de miar, aflito.


sábado, 20 de março de 2021

Mensagem numa garrafa


 Abriu a carta e...


Desdobrou a folha, que encontrara dentro de uma garrafa à beira mar. 

Mas...era apenas uma folha com letras e sinais indecifráveis, espalhados!

Tentou construir o puzzle, formar as frases com as palavras soltas e os sinais de pontuação. Surgiam aos poucos, díspares, sem sentido.

De repente, para sua admiração, surgiu uma mensagem, após várias tentativas frustradas! Como não tinha visto? Sempre lá estivera. Dizia: "Quando encontrares esta mensagem, lembra-te que nada é por acaso. As respostas sempre estarão visíveis, se as quiseres ver! O invisível será sempre visível para um coração aberto e uma mente consciente! "

Voltou a dobrar a carta, colocou-a novamente na garrafa e atirou-a de novo ao mar.

Do outro lado, numa praia qualquer, alguém encontrou a garrafa com a mensagem e agarrou-a.

Abriu a carta e...


segunda-feira, 15 de março de 2021

Banco de jardim


 Há muito que se sentia abandonado, só, triste e inútil, aquele banco de jardim. Questionava a razão da sua existência, o caruncho roendo-lhe aos poucos as pernas, as manchas negras sulcando-lhe a pele.

Passaram os dias em que as folhas secas que lhe caíam em cima eram o seu único e simples consolo. Depois veio a chuva, refrescando-lhe o corpo e alma solitária e esquecida.

Sentia saudades dos velhos que vinham todos os dias, apanhar um pouco de sol e sorrir à vida. Tantas histórias que escutar! Histórias de vida duras e cheias de sabedoria.

Às vezes vinha um casal de namorados e todo ele vibrava entre beijos, abraços e toques de amor.

As crianças, essas, pulavam-lhe em cima, escondiam-se atrás dele, brincavam e riam. Ele rejuvenescia dentro da sua madeira corcumida pelo tempo.

Um ou outro solitário tinha já encontro marcado com ele a certas horas de silêncio e partilhavam poesias, leituras, escritas e segredos. Eram momentos únicos.

Agora estava ali, abandonado, esquecido, esperando melhores dias. Para sua companhia, apenas umas ervas daninhas que se iam abraçando às suas pernas, e o cheiro de algumas flores que começavam a despontar.

Mas, tudo iria passar em breve.

Num bonito dia de sol, cabelos soltaram-se ao vento, louros, ruivos, castanhos, de todas as cores. Lembravam-lhe as folhas de Outono.

As borboletas soltaram-se, anunciando a Primavera e até as flores se esticaram, emanando perfumes doces e coloridos.

Uma senhora idosa, bem penteada, de sorriso no rosto, aproximava-se. 

Conheceu-a logo. Que saudades dos seus monólogos, dos pensamentos que só ele conseguia ouvir através dos fios de madeira do seu corpo!

Soltou um grito de alegria que viajou da terra ao céu. Finalmente, estava de novo acompanhado. Iria assistir ao nascer da Primavera pelos olhos de alguém. De repente, sentia-se tão macio como não se sentia há muito! Espreguiçou-se, deixando-se levar pelos pensamentos dos transeuntes.

domingo, 14 de março de 2021

Até que a vida nos separe


A primeira vez que entraste na minha cama, a noite caía, negra como breu, o escuro devastava e a lembrança da solidão tinha corroído o meu tempo.

Não sabia que vinhas e que entrarias na minha cama para me acenderes as noites e clareares a minha vida como um farol. 

Aproximaste-te como uma brisa com cheiro a mar, nas mãos macias trazias o cheiro das rosas. Os teus beijos desabrocharam na minha boca em palavras de amor.

A minha morada agora é a tua. Nela habitam dois corações acesos em chamas.

Até que a vida nos separe um dia!


sábado, 13 de março de 2021

Lucília, a mosca


-Ai! Tremo de medo, no meio desta podridão. Mas não vou desistir. 

A minha avó Larva era uma idosa muito sábia. Ela achava que neste mundo ou”se come ou é-se comido” (estas foram as suas palavras ao dar o último zumbido). 

Quando nasci, a minha mãe, D. Pupa, uma crisálida forte e linda de morrer, deu a sua vida por mim. Aí, percebi que a minha missão era grande e especial!  

Eu era uma mosquinha feia e repugnante para os outros. A primeira vez que me vi ao espelho até me assustei! Uns grandes olhos negros, enfastiados, ornavam-me o rosto.

Só gostava das minhas asinhas transparentes. Faziam-me lembrar a minha mãe.

Mas depois, quando via as borboletas, tão lindas, tão coloridas, sentia inveja de não ser como elas. Sentia-me um “patinho feio”.

Eu não acredito naquilo que a minha avó me deixou impresso no ADN. Comer para não se ser comido...que ideia!

Sei que nós, as moscas, não somos bem vistas. Enxotadas, afugentadas a toda a hora. Consideradas nojentas. 

Mas  a minha missão é demonstrar que todos fazemos parte de um Plano, de um Todo no Universo. Todos temos o nosso lugar neste planeta e somos precisos e úteis.

Mas, agora, estou a tremer de medo  neste cadáver pútrido, onde me debato com vários inimigos. A minha morte não será em vão. O assassino desta senhora será descoberto, mesmo que eu tenha que morrer.                                                                                                                                                                                                                                                                    

                                                                                         

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Nasci com os pés no mar


 Nasci com os pés no mar e a cabeça encostada à lua.

Cresci com o sabor a sal  no sangue e o sol como amigo íntimo. Os meus sonhos sempre  cheios de florestas tropicais, cheiro a terra molhada, cascatas batendo forte nas rochas, terras distantes com cheiros e cores singulares.

Parti para longe para realizar estes sonhos. O deslumbramento foi tal que dilatou o ser. O calor de sentir na pele a doçura escaldante da mescla de cores, cheiros e sabores que pairava naquela terra distante, abençoada pelos deuses do fogo. Ao longe, o som do rugir das feras na selva, como presságios duma vida livre e cheia de mistérios. 

Sonhava ser grande, partir nos meus sonhos e descobrir o mundo.  E parti. E descobri. 

Sentei-me à janela da vida. Olhei para dentro de mim. Num dia de sol escaldante que derretia as pedras das calçadas, deixei que os sonhos converssassem comigo. 

Viajei para lugares desconhecidos, para além dos céus e da terra. O mundo estava escondido dentro de mim. 

Deixei-me levar. 

Desse parto prematuro, nasciam as viagens mais belas, as imaginações mais mirabolantes. 

Alcançaria eu essas bolas de sabão feitas de sonhos que se derretiam no ar ao mínimo impacto? 

Um dia, voltei à terra que me viu nascer. Voltei a molhar os pés na água gélida das águas parturientes e encostei de novo a cabeça à lua. 

Escrevi. 

Construí os meus castelos de areia à beira mar na minha praia. 

Escrevi tanto! Deixei a minha alma falar ao sabor da tinta sangue que me saía do peito. O sangue era tanto que manchava as páginas do livro. De tal maneira, que eu já não sabia se as palavras escritas eram minhas ou de alguém ou algo exterior a mim. 

Do sonho de escrever um livro, nasceu   um filho. 

Com um filho em carne e osso - sonho maior dos sonhos-  já tinha sido agraciada. 

Faltava plantar a árvore. 

A árvore que me daria sombra e frutos da imaginação, ramos para me ligar ao mais alto e raízes na terra para escrever o livro dos " sonhos que nasceram primeiro".

Um convite a entrar nesse mundo, o meu mundo de poesia e cor. 

Uma viagem inesquecível pelos meandros do ser. 

Porque, como dizia o poeta :"o sonho comanda a vida". 

Os sonhos nascem sempre primeiro. Como embriões, crescem dentro de nós e depois nascem,  e transformam-se em realidade. É só acreditar. Vamos sonhar?