terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Salvador

 SALVADOR

Mais um dia. Sinto o estômago quase colado às costas. Salvador é o meu nome. Que ironia! Salvador? Eu que quero ser salvo desta miséria onde chafurdo todos os dias. Há dois dias que só como uns restos de pão duro. E este frio? Morro congelado! Se ao menos alguma alma caridosa, desses voluntários que andam por aí, me trouxessem uma manta. Mas nem enxergam a minha presença. Chego-me ao Coxo, dorme a meu lado, roncando, indiferente a tudo. O ar é nauseabundo. Tapo-me com um cartão que encontrei na rua, perto dum armazém velho. 

Salvador - Ironia dos meus pais! Abandonaram- me em pequeno, quando viram que não me conseguiam sustentar. Menos uma boca... Sim, salvei-os do sustento de mais uma boca! Vagueei pelas ruas, perdido, e ia enganando a fome com aquilo que ia conseguindo roubar das mercearias ou encontrar por aí. Cheguei a vasculhar os contentores do lixo e às vezes lá encontrava uns restos de massa, arroz ou carne putrefacta. 

Salvador, eu? Quem me salva deste frio que me congela o corpo e desta fome que me engole as entranhas? 

A minha casa é uma cave submersa duma ponte desta cidade. Moro com o Coxo, o Zarolho e o Drogado. Boa gente. Gente a ser salva. Mas eu não faço jus ao meu nome. Nem nenhum deles, nesta vida.

Está tanto frio! O meu cérebro está a congelar, já nem sinto as mãos, e os meus pés são como pedras de gelo que não consigo mexer. O cheiro à minha volta é um misto de odores a gasóleo, fumo, suor e dejetos podres. Acabo por adormecer, nauseado. Sinto-me muito fraco, anestesiado pelo frio, a fome, os cheiros. Quero morrer!

 - Salvador, acorda! Está na hora de ires para o trabalho. - Estranho esta voz feminina tão familiar. Soa como música para os meus ouvidos. Desperto. Foi só um pesadelo!

 Cheira a pão torrado, a café acabado de fazer, ouço o crepitar da lenha na lareira na sala. Aninho-me neste conforto. Preciso sentir que é mesmo real esta cama quente onde estou deitado. Sinto a alma mais reconfortada, agora. Suspiro de alívio. Estou vivo e escapei de um pesadelo! Vislumbro o sorriso mais amoroso, os olhos mais ternos, do mundo, a minha salvadora: 

 ─ Bom dia, paizinho! ─  Dá-me um beijinho no rosto. Sabe-me a doces de Natal, daqueles feitos com amor no fogão quente da nossa mãe. Suspiro. Afinal ainda terei oportunidade de salvar alguém, nem que seja


do frio da noite negra. Nunca se sabe se o céu nos poderá cair em cima. A qualquer um de nós. De um momento para o outro.








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