domingo, 18 de abril de 2021

Perdida na Combustão




Naquele dia, procurou o carro no parque de estacionamento, acometida por uma habitual e estranha amnésia .

No meio daquelas viaturas, de todas as marcas, onde teria estacionado a sua?

A cabeça voava para longe – outros mundos por descobrir. O veículo que a conduziria não seria sólido, ultrapassaria as leis da física, qual teletransporte sem fronteiras.

Dominada por estes devaneios, observava as viaturas, alinhadas lado a lado, nos contornos desenhados no chão.

Cada uma transportava uma história, segredos por desvendar. Quiçá, pudessem contá-las, qual Kitt, carro falante. Sorria. Imaginava algumas histórias. Amores ilícitos nos estofos.

A sua história era única.

Procurava. Onde teria deixado o seu?

Imaginava-se agora numa “pão de forma” dos anos 70 – só Peace and Love.

Que monte de latas frágeis, efémeras, metáforas de vida!

Passou. Não o viu. Prosseguiu.

Parou.

Um vulto, vestido de óleo, cheiro a gasolina, voz rouca do cigarro quase engolido, aproximou-se. Tocou-lhe no ombro:

- Menina, onde estacionou o seu carro dos sonhos? Quer levar-me? Estou farto desta prisão tóxica, em troca de uns míseros trocos!

Agarrou-lhe a mão, sem medo e foram procurá-lo.

Entretanto a noite caíra, todos os carros se confundiam. Só um rasgo da luz da lua permitia vislumbrar os que ainda persistiam em pernoitar por ali.

Esquecera-se até da cor do seu.

Saberia o arrumador onde encontrar o carro dos sonhos?

Subitamente, este ser enigmático entrou numa espécie de combustão. Todo ele era labaredas de fogo e luz. Dos seus braços saíram umas asas. Seria um anjo?

Os olhos eram como estrelas fulminantes, o cheiro que exalava já não era de gasolina, mas de um perfume inigualável.

Agarrou-a pela cintura, elevando-a. Pairaram sobre o parque onde o amontoado de latas esperava que alguém as resgatasse daquela imobilidade.

A sua, algures, esquecida.

No meio das outras.

Naquele planeta estranho.

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