segunda-feira, 26 de abril de 2021

A mulher sentada à janela


 Está a morrer a mulher sentada na janela da vida.

Ninguém a vê.

Dizem que o mundo que olha pela janela é o seu. 

Não o reconhece.

Está a morrer a mulher sentada na janela da vida. 

Está só. 

Morre nessa solidão com as marcas na pele dos caminhos secretos. 

Doiem essas marcas... São feridas que fizeram casa dentro de si. 

E a mulher sentada, só, ferida, morre, lentamente, sem que ninguém a veja, ninguém a sinta. 

Nesse mundo que dizem ser seu, passam, indiferentes, os transeuntes da vida, mascarados daquilo que nunca foram. 

Morre lentamente sem que a saibam, sem ser gente.

 Só, ferida, com a máscara da vida. 



domingo, 25 de abril de 2021

VERTIGEM


 2050

Leon acorda. Onde está?

Sente os membros entorpecidos, o cérebro congelado. Toca, a medo, na cabeça. Onde estão os seus cabelos?É apenas um ser em estado vegetativo, abandonado numa cave escura, numa cama bafienta.

Quem é, de onde vem, como foi ali parar? São as únicas perguntas que lhe assolam o cérebro ainda confuso.

Olha à volta. Não vê ninguém. 

2027, 

Um ano terrifico para a humanidade. Uma peste, sem causas definidas, devastara  um terço da população da face da Terra.  Entretanto, seres de outros planetas tinham-no invadido. Aproveitando-se duma humanidade enfraquecida, muitos deles intentaram os seus planos maléficos. 

Leon era um homem de meia idade, bem constituído, vibrante de vida. 

Trabalhava para uma causa que considerava maior: um projeto ecológico a nível mundial. A preservação da Natureza era tudo o que o movia. 

E sentia-se plenamente realizado  neste propósito de vida. 

Dana, a sua namorada, uma bela mulher de cabelos louros e  curvas  atraentes, acompanhava-o em todas as expedições pelo mundo no cumprimento desta missão. 

Neste ano de 2027, a humanidade acordou duma catástrofe. Apenas alguns sobreviveram. 

Aliens,  vindos de diversas partes do Universo, tinham invadido a Terra. Alguns tentavam destruir o pouco que dela existia,  e  lutavam com as forças a que Leon e Dana pertenciam, que procuravam preservar  a Natureza subjacente. 

No meio desta luta inglória,  apareceu uma espécie, diferente de todas as outras, oriunda do planeta Etheria. 

Michael era o comandante da nave e estabeleceu contacto com Leon. 

- Estamos aqui para vos ajudar! - disse, telepaticamente, Michael, cuja voz chegou de imediato ao coração de Leon. 

Este acolheu-o, abrindo o coração como se de um abraço, selado há séculos, se tratasse. Um Amor Maior, inexplicável, unia-os. 

- Sim, meu querido Michael. Urge salvar o planeta e a restante humanidade restante que sobreviveu a estes tempos difíceis. 

- Para isso, terás que conhecer o meu Planeta Etheria. Convido-vos, a ti e a Dana, a visitá-lo para aprenderes como vivemos e como somos felizes. Serviremos como modelo para criarem uma Nova Terra. 

Sem hesitar, Leon e Dana embarcaram na nave, receosos, mas ao mesmo tempo ansiosos. 

 Respirava-se e sentia-se junto destes seres doces e amigáveis uma energia de Amor, calma e etérea, como seria, de certeza, esse planeta.

A nave partiu com Leon e Dana. Ainda conseguiram vislumbrar as cinzas e despojos do seu planeta, tão maltratado, que ficava para trás. As lágrimas caiam-lhes pelo rosto. Sentiam-se impotentes. 

Agora observavam a beleza do Universo, com as suas galáxias, estrelas, planetas e sentiam-se cada vez mais pequenos. 

Perigo repentino. Um meteoro gigante aproximava-se a toda a velocidade da nave. 

Dana agarrou-se a Leon, tremendo de medo. Felizmente, passou ao lado. Estavam salvos. 

Finalmente, chegaram a Etheria. A atmosfera era leve, branca, rosa, dourada. Os habitantes vieram dar as boas vindas. Não pronunciavam palavras, mas as suas vozes eram compostas de música e poesia numa linguagem de amor que se sentia no coração. Eram aqueles que, na Terra, apelidavam de Anjos, deslocando-se com as suas asas níveas, subtilmente, conforme a gravidade do ar. 

Viviam dançando ao sabor de música celestial e nada precisavam para serem felizes. 

A Natureza retribuía esse amor, criando naturalmente o alimento de que necessitavam. 

Todos faziam parte de uma grande família de Amor que zelava, à distância, por outros planetas necessitados, através de ondas telepáticas. 

Leon e Dana não queriam acreditar no que viam. Era um sonho. O sonho que sempre tinham desejado para o planeta Terra. 

Adormeceram nessa noite embalados pela música de Etheria. 

Subitamente, foram brutalmente acordados por umas criaturas monstruosas, verdes, viscosas e repugnantes. Os Aliens do planeta Zombie tinham invadido Etheria. 

Agarraram Dana e, entre os seus braços de polvo, levaram-na para longe de Leon, que se debatia numa luta desigual para a proteger. Em vão. 

Os gritos de Dana, à medida que desaparecia nos braços do maldito ser, eram farpas que entravam nos seus ouvidos e se cravavam no coração. 

-Danaaaaaa! - gritava Leon, perante os atónitos Anjos de Etheria, agora acorrentados e impotentes perante tanta maldade. 

De repente, sente um braço verde e viscoso, agarrando-o pelo pescoço. Estava agora numa arca congeladora e começava a deixar de sentir o corpo, o cérebro fugia-lhe para longe, as mãos e os pés deixaram de se mover. Só o coração ainda batia. 

Não sabemos quanto tempo Leon esteve ali, era um coração palpitante dentro de um bloco congelado mas a viagem que fez, foi alucinante e ao mesmo tempo mágica. 

O coração de Leon não parava de bater e agora não tinha barreiras nem fronteiras. Viajava por todas as galáxias existentes no Universo. Conheceu-se noutros corpos, noutros mundos, noutras vidas. Sentiu que era um Ser fantástico e poderoso. Como comandante, apenas o coração o guiava nesta viagem. 

Viu-se e reconheceu-se numa estrela, numa flor, numa criança, no mar infinito, numa árvore, num pássaro. 

Ele era tudo. Será que afinal Deus se tinha personificado em si mesmo? Ou será que tudo o que sentia era a essência divina na sua totalidade? 

Uma Paz infinita apoderou-se do seu ser e o calor dessa Paz e desse Amor quebrou-lhe o gelo que o embalsamava.

2050

Acordo.

Não sinto o corpo. É algo exterior a mim. Não conheço este invólucro onde estou afundado. 

Quem sou? O que estou aqui a fazer? 

Abro os olhos ainda  obscurecidos e observo à volta. 

Não vejo nenhum ser. 

Tento mexer uma perna. O degelo deste invólucro que não conheço inicia-se.

Toco com os dedos na parede do buraco onde estou. Consigo, aos poucos, sentir um cheiro nauseabundo à minha volta. Uma mistura de mofo e dejectos inunda a zona circundante. 

Salto deste abismo. Bamboleante, oscilante e a medo, saio. Encontro uma cidade. Ah! Recordo-me agora. Este é o meu planeta! 

Mas não há ninguém. Vagueio, perdido, pelas ruas e não vejo nem uma pessoa. Onde estão todos? 

Que aconteceu?

Entro num supermercado. A porta estava aberta. 

Para minha surpresa, as prateleiras estão cheias. 

De repente, penso:

-Onde está o meu amor, a minha Dana? 

 Agora lembrei-me da maneira atroz como me foi tirada por aquele ser horrível. 

Continuo a percorrer as ruas desertas. Sou o único ser vivo ao cimo da Terra. 

Nem um animal para me fazer companhia. 

Confundo a ilusão com a realidade. 

Será que foi tudo um sonho? Ou fruto da minha imaginação? 

Será que tudo é um SONHO, o local onde vivi sempre? 

Se o sonho é criado por mim... 

De repente, acordo e vejo na minha frente a figura mais bela e amorosa que alguma vez vi. 

- Dana, és tu? 

E, no meio de um abraço e de um beijo ardente, fundimo-nos num só corpo que se esfuma no espaço e se perde no ar até ao infinito. 

Agora somos só nós na nossa Casa de Amor.


quarta-feira, 21 de abril de 2021

Sim


 

Sim

Espero ansiosamente esta palavra. há anos . alargo o passo, mas não consigo acompanhar a minha vontade.

o anel de ouro e diamantes  cintila no bolso do casaco, escolhido para adornar o dedo da minha princesa.

há dois anos que não a vejo! dois anos que parecem duas eternidades!

recordo, como se fosse hoje, da primeira vez que a vi, sentada naquele banco do jardim. pensei que estava a ter uma visão. uma flor, no meio das flores.

Olhámo-nos e reconhecemo-nos logo.  saudades de algo distante e misterioso.

(há quanto tempo não te via! as nossas almas entrelaçaram-se naquele momento.)

ambos fulminados pelos raios ardentes duma paixão inexplicável!

naquele mesmo banco, jurámos amor eterno.

seguiram-se dias e noites de paixão interminável. o sonho realizado. esquecemos que existia tempo, alheados deste mundo.

passaram dois anos. sonhei com ela todas as noites.

a vida obrigara-me à ausência.

mensagens apaixonadas, telefonemas sucessivos para acalentar a dor. a voz dela um poema para os meus ouvidos.

sinto ainda os  lábios carnudos nos meus, os beijos quentes escaldantes, o cheiro a perfume, misto de doce e floral, a sua pele de veludo, as suas mãos macias, o calor do seu corpo escultural diluindo-se no meu.  o coração dispara.

tremo de ansiedade enquanto me aproximo do nosso, (só nosso) banco de jardim. o coração quase me salta do peito.

no meio das flores, naquele mesmo banco onde nos encontrámos e depois nos despedimos, salta-me à vista um vestido vermelho, um decote sexy, adivinhando o seu peito voluptuoso. Um rosto, de sorriso único e deslumbrante, rodeado por um cabelo da cor do sol. uma visão! é ela em carne e osso, o ser mais belo do mundo!

sem fôlego, aproximo-me do seu ouvido:

- Marta, ainda queres casar comigo?

a resposta, o êxtase:

- Sim!






domingo, 18 de abril de 2021

Perdida na Combustão




Naquele dia, procurou o carro no parque de estacionamento, acometida por uma habitual e estranha amnésia .

No meio daquelas viaturas, de todas as marcas, onde teria estacionado a sua?

A cabeça voava para longe – outros mundos por descobrir. O veículo que a conduziria não seria sólido, ultrapassaria as leis da física, qual teletransporte sem fronteiras.

Dominada por estes devaneios, observava as viaturas, alinhadas lado a lado, nos contornos desenhados no chão.

Cada uma transportava uma história, segredos por desvendar. Quiçá, pudessem contá-las, qual Kitt, carro falante. Sorria. Imaginava algumas histórias. Amores ilícitos nos estofos.

A sua história era única.

Procurava. Onde teria deixado o seu?

Imaginava-se agora numa “pão de forma” dos anos 70 – só Peace and Love.

Que monte de latas frágeis, efémeras, metáforas de vida!

Passou. Não o viu. Prosseguiu.

Parou.

Um vulto, vestido de óleo, cheiro a gasolina, voz rouca do cigarro quase engolido, aproximou-se. Tocou-lhe no ombro:

- Menina, onde estacionou o seu carro dos sonhos? Quer levar-me? Estou farto desta prisão tóxica, em troca de uns míseros trocos!

Agarrou-lhe a mão, sem medo e foram procurá-lo.

Entretanto a noite caíra, todos os carros se confundiam. Só um rasgo da luz da lua permitia vislumbrar os que ainda persistiam em pernoitar por ali.

Esquecera-se até da cor do seu.

Saberia o arrumador onde encontrar o carro dos sonhos?

Subitamente, este ser enigmático entrou numa espécie de combustão. Todo ele era labaredas de fogo e luz. Dos seus braços saíram umas asas. Seria um anjo?

Os olhos eram como estrelas fulminantes, o cheiro que exalava já não era de gasolina, mas de um perfume inigualável.

Agarrou-a pela cintura, elevando-a. Pairaram sobre o parque onde o amontoado de latas esperava que alguém as resgatasse daquela imobilidade.

A sua, algures, esquecida.

No meio das outras.

Naquele planeta estranho.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

D. Xica e Malacueco


 




Tinha ido visitar a lua.

Dª Xica que tinha fama de feiticeira na aldeia.

Vivia sozinha num casarão enorme e velho, grande demais para albergar aquele corpo tão enfezado.

Raramente alguém a via.

Vestida sempre de negro, um pequeno carrapito no alto da cabeça, sapatos rotos de velhos sempre a chinelar sobre uns pés magros de unhas enormes e sujas, um rosto carrancudo, olhos misteriosos, nariz adunco.

Ninguém tinha a coragem de se aproximar. Sabe-se lá porquê!

Adivinhava-se o cheiro a mofo e bolorento dentro de casa, as teias de aranha, o fumo constante da lareira. Uma imensa e negra floresta estendia-se ao redor.

O medo instigava à solidão desta enigmática personagem.

Em noites de lua cheia, sabia-se (sabe-se lá como) que saía à rua – dizia-se- saía, chinelando, pé ante pé.

Nessa noite, Dª Xica teve um arrepio de medo. Que monstro era aquele, magro, enorme, que se aproximava?

“De noite todos os gatos são pardos” – balbuciou, tremendo.

Reparou, num relance, que o pressuposto monstro nada mais era que um gato enorme, preto, que, sem medo, se aproximava. Miava, dando-lhe “marradinhas” com a sua cabeça peluda, grandes olhos verdes. Nunca nenhum ser vivo se tinha aproximado dela assim.

A paixão foi tal que o levou para casa. Malacueco ficou o seu nome.

Anos e anos de amor entre ambos se seguiram.

O gato negro seria objeto dos seus feitiços? – perguntavam-se os aldeões.

Num dia, muito negro e chuvoso, Malacueco surgiu no largo da igreja, miando aflitivamente. Ninguém sabia o motivo desse pranto gatil.

Alguém, mais afoito, resolveu ir à casa da dita feiticeira.

Numa cama de rosas, rodeada de velas, odores paradisíacos, estava uma dama, linda de morrer. Dª Xica tinha morrido. Era bela a imagem que os curiosos observavam!

O encanto desfizera-se! Malacueco não parava de miar, aflito.